11 julho 2007

entardecer

Com o passar dos anos, das décadas, tendemos a esquecer ou negligenciar as pequenas coisas que nos dão prazer. Observar com olhos alheios, para mim, é uma delas. O poder económico, o comodismo, a preguiça, privam-nos de situações e momentos deveras interessantes. Há quatro anos que, neste país, não frequentava os transportes públicos. Numa tarde igual a tantas outras, apeteceu-me diluir-me na cidade, andar à deriva, ver (mais do que olhar) as pessoas com quem me cruzaria, inventar histórias para a vida de cada uma delas, colocá-las numa peça de teatro só minha, sem as cruzar. Foi o que aconteceu quando me encostei a um pilar da estação, a uma hora de ponta quase estéril, onde meia dúzia de pessoas se prostravam. “- Lucinda!”, gritava uma, olhando para o andar de cima. “-Não te ouviu.”, replicava outra. Mulheres das que se levantam às seis da madrugada, uma para montar a banca de legumes, outra para vender roupa interior a dois euros a peça. Mais à esquerda um casal elegante, ele engenheiro informático, ela empregada da pastelaria mais próxima do escritório. Ele fala-lhe de gigabytes, de memórias ram, do último grito de software de imagem. Ela sorri, gentilmente, sem perceber. Não lhe fala de bolos. Ele derrete-se perante o sorriso ou a ignorância, ou ambos, porque tanto um como outra conseguem tornar uma pessoa mais bela, e continua o monólogo. Um pseudo-executivo que chega com uma mala Pierre Cardin na mão, daqueles que se gaba do Mercedes classe S que tem na garagem, que nunca conduziu por nunca ter existido, a transpirar Verão e petulância por todos os poros. No meio do cais de embarque, um turista de mapa na mão e o olhar ansioso de quem procura alguém que fale a mesma língua que ele. Eu falo! E lá lhe explico como consegue chegar ao destino pretendido, sem lhe confessar que esta tarde também eu sou turista, mas com destino incerto para lá dos teus braços, de encontro ao vazio que ficou de nós. Olho em volta mais uma vez e a imaginação dissipa-se. Todas estas pessoas... Quantas delas já se cruzaram antes no meu caminho ou no teu? Quantas já nos tornaram, por um instante também, personagens de uma trágico-comédia que por acaso se nos colou à pele? Quantas delas poderão eventualmente ler estas linhas, sem nunca saberem que estavam presentes, que foram testemunhas do momento da minha partida para onde não mais me irás alcançar? Por isso faço questão de decorar os traços de todos os rostos que por mim passam, para mais tarde reconhecer um outro tu que vi pela primeira vez numa tarde solarenga de uma estação qualquer.

photo Burning Train by aengys



18 comentários:

Dhyana disse...

As vezes tb me acontece. Ando pelas ruas, independentemente da hora, sem destino, sem ser turista. Apenas andar e estar comigo.
Beijos...

aframboesa disse...

encontros e desencontros. . .

perco algum tempo a pensar nisso. . . é tão estranho. o que poderia ser, o que poderia ter sido quando já nada do que sonhávamos tinha a mínima hipótese de o ser. as pessoas e os sítios. os pensamentos e os choques do pensar a esbarrar em esquinas de ruas, a lamber o chão do mercado.

bisou *

Francesca Lambruscco disse...

Tantos rostos em tantos outros dias. Um rosto que nos é mais familiar, que também somos nós. Uma identificação que nos ultrapassa a pele, as veias, os membros. E o espaço de terra onde nos deitámos à espera de um tempo em que esse rosto deixe de estar em todos os lugares por onde paramos. Uma estação qualquer.

Mais uma vez parabéns pelo testemunho profundo. ~

Muito.


:)

lamia disse...

É uma forma de, pelo menos, não nos perdermos de nós, Dhyana. Outras vezes, de nos encontrarmos numa ruela solitária ou num banco de jardim.

lamia disse...

Fruto silvestre, é um facto. Como o de, estranhamente, perante circunstâncias favoráveis, quase qualquer pessoa ser perfeita para nós por um tempo limitado.

bisou pour toi, aussi

lamia disse...

Cara Miss F., por vezes os rostos de ontem e os de hoje acabam por se misturar até delinearem um outro, estranho, desconhecido. É nesse momento que já não precisamos esquecer.

Fallen Angel disse...

Fizeste-me sorrir, lamia ... no meu ultimo post abordei um pouco essa temática... o que falar? Será que seriamos ouvidos?.. numa outra temática, claro. Cumprimentos. :-)

lamia disse...

Angel, que o sorriso se prolongue por muitas e muitas linhas. :)

sm disse...

sometimes it takes only a tear drop to wake the most hidden things...

Take care!

lamia disse...

Sometimes it takes only a glimpse of warm light...

sm disse...

Ou isso :)

Coragem disse...

Tantas vezes nos identificamos, com gentes e lugares que nunca fizeram parte de nós. Vozes,cheiros e as mensagens por dizer nos ficam gravadas na memória e nunca saberemos explicar porquê. Eu estava lá presente, senão nesse dia, noutro qualquer.
:o)

lamia disse...

♥coragem,

As vezes que damos connosco a dissertar convictamente sobre o que se apoia no nosso instinto/intuição, aquilo que sentimos certo e inquestionável, faz-me pensar que sim, provavelmente estavas. :)

Girstie disse...

Eu gosto de observar as pessoas, mas não para as coscuvilhar. Antes viajava muito de metro, sempre nos mesmos horários e no caminho que fazia quer de casa para o metro, quer do metro para o trabalho, encontrava as mesmas pessoas, as mesmas rotinas que fui "decorando" e observando. Ainda esta semana aconteceu de passar uma dessas pessoas que já faziam parte da minha rotina. A minha rotina mudou, a dela não, mas não me esqueço dela!

lamia disse...

Girstie, é observar, absorver através dos sentidos. É imaginar que somos por momentos outras pessoas a viver outras vidas. Não é minimamente invasivo. É, antes, uma forma de partilha momentânea.

lampâda mervelha disse...

Nem mais...

http://lampadamervelha.blogspot.com/2006/06/avies.html

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto.
Rolei por a� abaixo e comecei e continuei a ler este.
Voltarei para ler melhor o teu blog.

Bjss

lamia disse...

Silêncio, volta, sim... e faz-te ouvir, mesmo que de forma muda.
Obrigada.