22 agosto 2010

Não foste tu quem me trouxe aqui. Caminhei pelos meus próprios cascos, descalça e vulnerável, saltei aturdida do curro para uma arena sem saídas de emergência. Vi-me encurralada. Aproximei-me de ti como besta ingénua e curiosa que fareja. Reconheci-te e confiei-me. Um dia alimentaste-me os sonhos mais puros, as fantasias mais secretas. Coloquei-me por isso à tua mercê. Dei de mim tudo o que tinha e tudo o que a vida me emprestou. Não te temi após as primeiras investidas. Estranhei-te, como um filho espancado por um pai alcoolizado, que não percebe o que fez para o provocar. Não te temi quando me tingiste de vermelho. Encolhi-me e chorei, achando que a culpa era minha. Não te temi quando a incredulidade me tomou de assalto ao insistires nos golpes. Nem tentei escapar. Permaneci, hirta e quase firme. Depois a dor tornou-se acutilante. Revoltei-me contra ela. Sentidos entorpecidos, agredi-te com o ímpeto próprio do instinto natural de sobrevivência. Parti madeira e ferro, rasguei pano e pele, ensandecida. Debati-me como qualquer animal atingido mortalmente. Parti-te a ti. Mas nunca quebrei laços.

Agora desfaleço devagar. O meu couro não é tão resistente como o de outros membros da raça bovina, nem a minha subespécie é adaptada aos frenesins tauromáquicos. Tenho o mar a jorrar-me dos olhos e o sangue das artérias. Já nada no meu ser moribundo clama os arrufos da tua desumanidade. Já não há força no meu tumulto que me acoberte de ti. Deixa tombar as bandarilhas, arranca de mim as garrochas e degola-me. É o único acto de misericórdia que te resta. Ou quebra decisivamente e mistura o teu sangue com o meu, resgatando-me assim desta morte lenta.




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