09 agosto 2007

vazio

Há horas infinitas que me chovo dentro. Água densa e salgada. A tempestade veio do mar, invadiu os rios, rebentou diques e muralhas, inundou campos e cidades. Tsunami implacável e trágico.

Morro-me hoje de tudo o que sou. A noite percorreu murmúrios inaudíveis em tom de consolo. Mas eu estou inconsolável. Dos sonhos transbordaram faces sem nome, transfiguradas. A tua estava entre elas, suspensa no assombro do momento derradeiro da tua partida.

Depositaste-me nos braços o nosso filho, moribundo, já sem fome, na esperança de que o enterrasse longe da renúncia de que te alimentas. Não tenho coragem. Ainda ontem me agarrava a ele com todas as minhas forças, como se pudesse trazer-lhe um sopro de vida. Acreditei piamente, de cara lavada em lágrimas, que enquanto existissem gestos que naufragassem, existiria salvação.

Despojo-me agora do bem definitivo em que as coisas se eternizam. Abandono-me por não me caber.

Não há nada de luminoso no ferro dos grilhões que sacudo com violência, nas correntes que me estrangulam os sentidos. Grito até perder a voz. Ninguém ouve. Ninguém se importa. Só eu e tu, outrora, mirávamos o horizonte onde ergues o estandarte da tua vitória assassina. O verde e as flores secaram sob o sangue derramado à sombra do teu medo poente.

Distorci-me em plenitude. Porque aos teus olhos enlouqueci, enraivecida. Porque me crucificaste em espirais de lume. Porque expeles lava da boca e da ponta dos dedos. Porque, porque. E eu já não suporto o ácido sulfúrico que me espalhas sobre a pele como creme hidratante.

Das tuas palavras ficam-me restos de vozes e ruídos, em eco. E escuridão.

Vazo-me aqui, sem música, sem imagem, sem mim, sem nada.


28 comentários:

sm disse...

Aguardo o dia em que tanta sabedoria terá finalmente efeito na tua pessoa.
Aquele dia em que nao mais se apontará o dedo a ferida aberta do outro sem antes curar a nossa.
Aguardo paciente, como sempre fiz, na minha impaciencia, na minha ignorancia e na minha ansia de saber.
Aguardo sempre, com os olhos fixos, nao no horizonte mas, no que repousa a meus pés.
Aguardo ainda... e sempre... como sempre... que as nuvens escuras se afastem, nem que seja a sopro, para dar lugar ao belo e maravilhoso raio de luz que aquece a alma com a esperança.
E nunca abandono esta espera...

nana disse...

que verdade de dor....


partilho-a, se deixares, contigo.

comeremos azeitonas negras de tudo frente ao mar que nos embala a alma.


..


porque.

lamia disse...

sm, quem espera sempre alcança... ou desepera, consoante o peso da bagagem que traz dentro.

lamia disse...

nana, deixo, sim, mas sem azeitonas, pode ser? porque.

Ludmila disse...

A coragem... Os nadas... Os ruídos... E o enlouquecer... Abandonam lentamente o entardecer quando o os assombros se tornam salvações.

Na escuridão fica a ideia que daí sempre surge o despertar.

--- Fantástico, gosto do invólucro mas principalmente... do conteúdo.

lamia disse...

Lunna, depois da tempestade, vem sempre a bonança, é um facto. Mas por vezes teimamos em querer despertar em manhãs antigas.

--- Obrigada pela visita e pelo comentário. Espero que voltes.

Girstie disse...

É belo texto pela escrita em si mas triste ao mesmo tempo, as palavras que descreves angustiam cá dentro!

Obrigada pela visita, eu vou continuar a visitar e a deambular por aqui ;)

Isis disse...

Gostei muito do teu blog =) interessante!

lamia disse...

Girstie, é bom saber que o texto é transparente e que consegues partilhar o seu sentido, mesmo que não cause uma sensação agradável. Mas sabes... tudo tem o seu reverso, e a outra face é linda!
Deambula, sim. Deambula sempre. Pára só aos bocadinhos, para descansares um pouco. :)

lamia disse...

Isis, obrigada pela visita e pelo comentário.

O teu mundo também me parece sê-lo. Aliás, há, para mim, no gótico, um estranho fascínio. E digo estranho, porque não consigo explicá-lo. Gostava de o fotografar.

Mustafa Şenalp disse...

çok güzel bir site.

lamia disse...

Çok tesekkur ederim. :)

vida de vidro disse...

Por vezes temos surpresas neste "mundinho" da blogoesfera. Li este texto e tive que ler mais. Por aí abaixo. É claro que o texto está repassado de sofrimento. Amargo. Mas a qualidade da escrita é bem patente. Escrever é catarse, digo eu, por vezes.
Intrigaste-me.**

lamia disse...

vida de vidro, apraz-me a tua visita e as tuas palavras. Escrever é como chorar. Alivia e purifica, sim, por vezes, como tão sabiamente referes. Esta, foi uma delas, de facto.

Espero que a curiosidade se reflicta em muitas visitas. :) **

tcl disse...

a blogosfera está realmente cheia de surpresas e cada vez mais me convenço que somos um país de poetas, muitas vezes amargos, doridos. o fado transparece nos escritos de muitos de nós, coisa inerente à alma lusa.

mais uma vez, obrigada pela tua visita ao meu blogue. também gostei deste teu espaço onde lavas a alma e te tentas libertar do que te atormenta numa escrita delicada e recheada de poesia. continua!

lamia disse...

tcl, é sempre revigorante receber elogios como o que me dás. Agradeço-te a visita e o incentivo. Pretendo continuar, sim, sempre que em mim não caiba tudo o que trago. Sê bem-vinda, sempre.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Estive a ler todos os postes.

Um escrita muito profunda, diria que um pouco sofrida, um pouco saudosista, mas, muito bem escrita, de quem tem mão e talento para escrever.

Os meus parabens!

lamia disse...

Muito obrigada, Piedade. Mesmo. *

lampâda mervelha disse...

Sabe-me a mármore, escuro, frio, ao pó dos dias que restam.

lamia disse...

Lâmpada mervelha, é um sabor incomparável e inesquecível, não é?

Imensamente agradecida pela tua visita e por todos os comentários que deixaste. Volta sempre.

ap disse...

.......

um vazio, tão cheio de sensibildade, com nobreza de quem sabe manusear as palavras, na arte da prosa poética

....................

Beijinho e noite serena

lamia disse...

ap.... :) Mais que manusear, é exprimir. E por muito que se escreva, as palavras não chegam a traduzir metade do que se sente. Muito obrigada.

Anónimo disse...

Afinal... afinal nao consegui sair sem ler tudo ;)
E a parabens pela tua escrita (parece-me mto real)

Beijo*

mariomar disse...

fui conduzido, por palavras tuas, até este território inquietante, intranquilo, sanguíneo, onde te expões, escondendo-te, no fio da lâmina... escreves muito bem, sabes? - sabes.
voltarei a estes domínios...

M. disse...

Venho agradecer a visita. E gostei do que aqui li neste vermelho cor de sangue.

lamia disse...

Silêncio... sorrio-te.

lamia disse...

Mário, não sei o que sei, realmente, mas há que dar asas (mesmo que depenadas) ao que nos vai dentro.
Obrigada pela visita e pelo comentário.

lamia disse...

M., quem agradece sou eu. É vermelho sangue, é vermelho vida.